Os estúdios da Cinecittà foram inaugurados a 21 de Abril de 1937, depois de dois anos de obras sobre uma área de 600.000 metros quadrados ao longo da via Tuscolana, a nove quilómetros da cidade de Roma. Com 73 edifícios, entre os quais vinte e um estúdios fechados de várias dimensões, dezenas de escritórios e centrais eléctricas, augurou-se que seria “il gioiello che tutta l'Europa invidierà”. Ainda nos anos 30 e 40, serviu de cenário para os grandes épicos de Carmine Gallone, Guido Brignone, Alessandro Blassetti e Riccardo Freda. Apropriada pelos nazis como campo de detenção durante a Segunda Guerra Mundial, saqueada, atacada e bombardeada, operou depois como campo de refugiados durante dois anos, albergando três mil pessoas de várias nacionalidades, sendo então reconstruída pelos americanos e transformando-se na “Hollywood sobre o Tibre,” onde se rodaram épicos como Quo-Vadis, Ben-Hur ou A Queda do Império Romano, mas também comédias como A Pantera Cor-de-Rosa ou Férias em Roma e até filmes sobre o próprio cinema como A Condessa Descalça, de Joseph L. Mankiewicz, e Two Weeks in Another Town de Vincente Minnelli. Entre muitos outros.
“A viagem parece-me muito longa,” escreveu Enzo Girolami Castellari na sua recente e preciosa auto-biografia[1] sobre a primeira visita com o pai aos míticos estúdios da cidade de Roma nos anos quarenta. “Com o comboio suburbano, que se apanha quase ao amanhecer em San Giovanni, chega-se ao campo latino: extensões verdes e os arcos do aqueduto romano que as atravessam; mais ruínas cobertas de trepadeiras. Uma viagem extraordinária. Há muitos balões no céu, um sistema antiaéreo, explica-me o papá. Ao chegar à última estação, em pleno campo, surgem os muros que rodeiam um grande terreno, no qual se vêem pavilhões enormes a sobressair. A porta parece-me colossal, com um gigantesco letreiro: CINECITTÀ.”
Enzo G. Castellari nasceu um ano depois de se inaugurarem os estúdios da Cinecittà, mas cresceu dentro das suas instalações e acompanhou parte muito significativa da história do cinema italiano enquanto se fazia. Filho de Marino Girolami, pugilista tornado cineasta que realizou 78 filmes entre 1950 e 1982, sobrinho de Romolo Guerrieri, que quando fazia westerns assinava Rod Gilbert, Castellari conheceu a mulher, Mirella Casini, nas salas de montagem da cidade do cinema e aprendeu tudo sobre o ofício daquela que devia ser a única maneira. Trabalhando, começando como figurante, passando a actor e a duplo, aderecista, faz-tudo, assistente dos assistentes, assistente de realizador e por fim realizador de cinema, com uma noção perfeitamente abrangente de todo o processo. Em 1966, aos vinte e oito anos, teve finalmente a sua oportunidade como assistente de León Klimovsky, realizando não creditado a maior parte de Poucos Dólares para Django.
A sorte favorece os audazes, escreveu Virgílio. Outro italiano. Quando as coisas não estão a funcionar, quando os problemas se vão acumulando a cada hora que passa e alguém apresenta com sucesso uma solução informada apenas com as ferramentas de trabalho à sua disposição, poupando tempo e dinheiro a toda a gente, o mais provável é começar a ser ouvido. Para Acaba Com Eles e Volta Só, de 1968, o actor principal do filme, Chuck Connors, estava magoado, não conseguia andar a cavalo e comunicou isso a Castellari. “Chuck, não te preocupes,” disse-lhe o realizador. “Eu preciso da tua cara, das tuas expressões, das tuas frases, dos teus rasgos, da tua presença, da tua actuação... Deixemos a parte física para o duplo...” E com uns ângulos de câmara e uma montagem altamente inventivos, no ecrã, podíamos jurar que nada disto tinha acontecido.
Foi também nesse filme de 1968 que conheceu o mago espanhol dos efeitos especiais e das miniaturas Emilio Ruiz Del Río[2], que para o filme seguinte do cineasta italiano, La battaglia d'Inghilterra, materializou a batalha de Dunkerque e os destroços e os bombardeamentos com uma miríade de maquetas, miniaturas, vidros pintados e bonecos animados dispostos à frente da câmara e iluminados de forma a criar grandes ilusões de óptica. O talento de Ruiz Del Río, que trabalhou em centenas de filmes em todo o mundo, de As Legiões de Cleópatra a Conan, o Bárbaro, para mencionar apenas um par deles, foi determinante também em Quel Maledetto Treno Blindato, com os aviões que se vêem do buraco no telhado na barraca em que o pelotão de Bo Svenson se refugia e na cena final do filme, uma combinação muito engenhosa de miniaturas e modelos reais, que envolveu ainda um descarrilamento com uma locomotiva inclinada, efeito conseguido com a inclinação do cenário e da câmara para o lado esquerdo, inspiração de última hora do realizador.
Na rodagem de La polizia incrimina la legge assolve, de 1973, Castellari, o actor principal Franco Nero e o chefe de produção Antonio Mazza tiveram de reunir com Don Vincenzo «Pummarola», conhecido como “il capo” de Génova e segundo Castellari uma das inspirações para o Vito Corleone de Marlon Brando, para conseguir filmar no bairro de Prè, na zona portuária da cidade. Ele ofereceu-lhes os meios e a segurança necessários, desde que garantissem que a polícia não aparecia no bairro. O filme abre com dez minutos de perseguição frenética primeiro a pé por ruelas e depois de automóvel por túneis e pela auto-estrada, com música dos irmãos De Angelis, contando ainda com outra sequência, totalmente louca, sob plataformas num cais, em que um grupo de homens luta com ganchos e se perseguem quase agachados por pequenos barcos e tábuas de suporte em suporte, intercalada com planos dos reflexos deles na água e de uma velocidade e de uma elegância estonteantes. Um prodígio de encenação, um prodígio de montagem.
Entre meados e finais dos anos setenta, praticamente só os americanos e Fellini é que filmavam na Cinecittà, e os americanos com muito menos regularidade. A televisão e a publicidade começaram a invadir os estúdios praticando preços com que o cinema não podia competir e os produtores italianos procuraram alternativas mais baratas em Itália ou noutros países. A partir desses anos, Castellari filmou dentro dos estúdios apenas numa barraca abandonada para Quel Maledetto Treno Blindato e, já nos anos oitenta, nos restos de um cenário de O Nome da Rosa para uma série de televisão que nem sequer era realizada por ele. As ruínas e os escombros, as fábricas abandonadas e os destroços que tinha sempre preferido e que tinha usado em tantos filmes, transformavam-se agora em realidade, até já se usavam máquinas de nevoeiro para disfarçar o estado decrépito de alguns dos cenários, quase que como achados arqueológicos da queda de um novo império ao lado das ruínas com milhares de anos do outro império. O género que tinha ajudado a construir em Almería, deixava de interessar ao público, depois de centenas de westerns, westerns zapata, paródias e outras derivações, mas o cineasta ainda aí viu um pôr-do-sol para onde ir a cavalo e fez Keoma, uma alegoria para o fim dos tempos, uma elegia não só do western mas de toda uma indústria e de um modo de fazer cinema encarnados nesse Cristo índio interpretado por Franco Nero, que sofre e acaba por fazer sofrer os outros apenas por querer um lugar ao sol.
Enzo G. Castellari trabalhou com Gilbert Roland, Van Johnson, Fernando Rey, Vittorio De Sica, Philippe Leroy, Jack Palance, Franco Nero, Sterling Heyden, Martin Balsam, Michael Sarrazin, Ursula Andress, Fabio Testi, William Berger, Woody Strode, David Hemmings, Fred Williamson, Vic Morrow, Christopher Connelly, Henry Silva, Dionne Warwick, Kabir Bedi, Giuliano Gemma, Vittorio Gassman e Claudia Cardinale. Mas é alguém que nos voltou a lembrar, como Roger Corman, que é preferível produzir cem filmes de um milhão de dólares do que um filme de cem milhões de dólares, que é possível fazer imenso quase sem nada, que é possível fazer grandes filmes com pouquíssimo dinheiro, que é até possível fazer imenso dinheiro nestes termos e abalar o status quo que prefere que pensemos que se tem de gastar rios e rios de dólares para se criar produtos de qualidade. E que há uma elite bem paga e bem instruída para fazer isso tudo por nós. E pagou o preço com uma acção injustíssima em tribunal pela justiça do capitalismo dos Estados Unidos da América. Provavelmente não queriam que se soubesse que é possível fazer cinema só com espelhos, janelas partidas, frechas das portas, das escadas e das paredes, corrimões, grades, cercas, crachás baleados, chamas de velas, vinho derramado sobre a mesa, caixotes, portas que abanam ao vento, pernas, caras, olhos ou os cinco dedos de uma mão.
1990: I guerrieri del Bronx foi proposto a Castellari pelo produtor, realizador e argumentista Fabrizio De Angelis, responsável pela Fulvia Film[3]. Ambientado numa Nova Iorque do futuro, em que o bairro do Bronx é disputado por gangues como os Riders, os Skaters, os Zombies, os Tigers ou os Scavengers, descreve a fuga de Ann (interpretada pela filha de Enzo, Stefania Girolami), filha do presidente da Manhattan Corporation (interpretado por Castellari), para o Bronx, onde é salva por Trash (Marco De Gregorio, a.k.a. Mark Gregory, um desconhecido encontrado pelo realizador no ginásio que frequentava), o líder dos Riders. A Manhattan Corporation contrata o mercenário Hammer (Vic Morrow) para a resgatar, mas ele parece mais interessado em limpar totalmente o Bronx, virando ainda os gangues uns contra os outros. Depois de tentar unir todos os líderes contra o exército de Hammer, Trash não consegue evitar o massacre nem a morte de Ann, vingando-se de tudo e de todos acorrentando Hammer à sua mota e arrastando-o pelo asfalto até ser congelado em freeze frame. E assim os deixamos.
Tal como o primeiro filme, Fuga dal Bronx foi rodado entre a Itália e os Estados Unidos. Castellari pôde contar com grande parte dos seus colaboradores preferidos, como Tito Carpi no argumento, Gianfranco Amicucci na montagem, Francesco De Masi na banda-sonora e Giancarlo Prete (a.k.a. Timothy Brent), o irmão Enio Girolami (a.k.a. Thomas Moore) e o primo Massimo Vanni como actores, reservando para si próprio o papel de operador de rádio, qual disc jockey que troca as cenas e comanda as operações. Mark Gregory regressa para o papel de Trash, que desta feita luta com muito menos aliados contra as forças da General Construction Corporation enquanto esta incumbe Floyd Wangler (grande, grande Henry Silva, secundário de Budd Boetticher, Henry King e Jim Jarmusch) de despejar por todos os meios ao seu alcance os habitantes do Bronx. “Goddamn hard to kill,” como diz sobre eles o próprio Wangler. Punks, metaleiros, grafiteiros, skaters, motards, desordeiros, ogres, tigres, guerreiros, príncipes e princesas de biqueiras de aço e casacos de cabedal que se recusam a viver como a sociedade quer que vivam.
Fuga dal Bronx não pára por um momento desde que ouvimos os “You are ordered to leave the Bronx. I repeat, you are ordered to leave the Bronx” da personagem de Castellari. Encadeado praticamente a uma ideia por segundo, o que equipara a urgência da rodagem à urgência da missão das personagens, mostra-nos entre muitas outras coisas um helicóptero a tentar encurralar o Trash de Mark Gregory que se refugia em condutas e é recortado por elas nos enquadramentos, uma escada que balança por cima dele depois de um desabamento e é explorada sob vários planos e pontos de vista de forma altamente imaginativa, cortes de Itália para os Estados Unidos e dos Estados Unidos para Itália como se de um só cenário se tratasse, conversas a três em que todos se movem e a câmara os enquadra e re-enquadra a cada passo do caminho, panorâmicas e travellings de presas para caçadores que no fim dos planos se transformam também em presas, explosões em que homens fardados com fatos espaciais brancos voam em câmara lenta entre o fumo e o fogo e caem de braços abertos e contorcidos do alto de prédios, gestos com as mãos de miúdos e graúdos que anunciam essas detonações, a morte do presidente que vendeu a morte e o genocídio por progresso num plano que se afasta do seu rosto para revelar o seu assassino entre os escombros, um bailado final em câmara lenta já nos limites do absurdo que transforma a violência em modo de vida e que mais uma vez só pode ser interrompido por um freeze frame. Ilhas, descampados, esgotos, edifícios abandonados e em ruínas, obstáculos e refúgios para os três sobreviventes que se despedem tão rápido como se conheceram, com gestos e olhares decididos mas enigmáticos, deixando Trash entre o ferro e o fogo amansados, dificilmente pronto para outra aventura.
[1] «Il bianco spara», Bloodbuster, Milão, 2016. Publicado em Espanha com o título «El cineasta se rebela» pela Applehead Team Creaciones, Benalmádena, Málaga, em 2023 (tradução de Santiago Alonso). Todas as citações de Castellari e quase toda a informação neste texto vêm desta fonte.
[2] Veja-se o filme El último truco, de Sigfrid Monleón, em que se mostra o trabalho deste artesão fabuloso que trabalhou nas grandes produções de Hollywood em Itália e com realizadores como Manuel Mur Oti, Michael Powell, Vittorio Cottafavi, Sergio Leone, David Lean, Robert Siodmak, Luis Buñuel, John Milius ou Richard Fleischer.
[3] A Fulvia Film foi uma produtora italiana activa entre o final dos anos setenta e o início dos anos noventa. Além de produzir três filmes de Castellari, 1990: I guerrieri del Bronx (1982), I nuovi barbari (1983) e Fuga dal Bronx (1983), também permitiu a Lucio Fulci realizar a sua obra-prima, …E tu vivrai nel terrore! L'aldilà (1981), e alguns dos seus melhores trabalhos, como A Casa do Cemitério (1981), O Estripador de Nova Iorque (1982) e Manhattan Baby (1982).
texto escrito para o catálogo dos Encontros de Cinema do Fundão de 2025. [belíssima edição com filmes de Pedro Ruivo, Gus Van Sant, H.C. Potter, Enzo G. Castellari, Pablo García Canga, Mikio Naruse e Alejandro Pereyra. Por pior que os tempos estejam, há sempre alguém pronto a enfrentá-los e a revertê-los com coragem, paixão e entusiasmo. "One for the ages."]
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